AMOR DE PERDIÇÃO (Memórias Duma Família) Camilo Castelo Branco

AMOR DE PERDIÇÃO
(Memórias Duma Família)
Camilo Castelo Branco


AO
ILMO. E EXMO. SR.
ANTÔNIO MARIA DE FONTES PEREIRA DE MELO
DEDICA
O AUTOR
Ilmo. e Exmo. Sr.
Há de pensar muita gente que V. Exa. não dá valor algum a este livro, que a minha gratidão lhe
dedica. porque muita gente está persuadida que ministros do Estado não lêem novelas. É um
colega de V. Exa. discorrer no parlamento acerca de caminhos de ferro - Com tanto engenho o
fazia, de tantas flores matizara aquela matéria. que me deleitou ouvi-lo. Na noite desse dia,
encontrei o colega de V. Exa. a ler "Fanny", aquela "Fanny" que sabia tanto de caminhos de ferro
como eu.
Que V. Exa. tem romances na sua biblioteca, é convicção minha. Que lá tem alguns, que não leu,
porque o tempo lhe falece e outros porque não merecem tempo, também o creio. Dê V. Exa., no
lote dos segundos, um lugar a este livro. e terá assim V. Exa. significado que o recebe e aprecia,
por levar em si o nome do mais agradecido e respeitador criado de V. Exa..
Na cadeia da Relação do Porto,
aos 24 de setembro de 1861.
CAMILO CAS'TELO BRANCO.
INTRODUÇÃO
Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da Relação do
Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte:
Simão Antônio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na
Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua
prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho
e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos
castanhos, cabelo e barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul, colete de fustão
pintado e calça de pano pedrês. E fiz este assento, que assinei - Filipe Moreira Dias.
A margem esquerda deste assento está escrito:
Foi para a Índia em 17 de março de 1807.
Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o degredo de um
moço de dezoito anos lhe há de fazer dó.
Dezoito anos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida! As louçanias do coração
que ainda não sonha em frutos, e todo se embalsama no perfume das flores! Dezoito
anos! O amor daquela idade! A passagem do seio da família, dos braços de mãe, dos
beijos das irmãs para as carícias mais doces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor
da mesma sazão e dos mesmos aromas, e à mesma hora da vida! Dezoito anos!... E
degredado da pátria, do amor e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem liberdade,
nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem um amigo!... É triste!
O leitor decerto se compungiria; e a leitora, se lhe dissessem em menos de uma linha a
história daqueles dezoito anos, choraria!
Amou, perdeu-se, e morreu amando.
É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura mais bem
formada das branduras da piedade, a que por vezes traz consigo do céu um reflexo da
divina misericórdia?! Essa, a minha leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não
choraria se lhe dissessem que o pobre moço perdera honra, reabilitação, pátria, liberdade,
irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de
inocentes desejos?!
Chorava, chorava! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobressalto que me causaram
aquelas linhas, de propósito procuradas, e lidas com amargura e respeito e, ao mesmo
tempo, ódio. Ódio, sim... A tempo vereão se é perdoável o ódio, ou se antes me não fora
melhor abrir mão desde já de uma história que me pode acarear enojos dos frios
julgadores do coração, e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa virtude de
homens, feitos bárbaros, em nome da sua honra.
I
Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de linhagem e um dos
mais antigos solarengos de Vila-Real de Trás-os-Montes, era em 1779, juiz de fora de
Cascais, e nesse mesmo ano casara com uma dama do paço, D. Rita Teresa Margarida
Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco, filha dum capitão de cavalos, neta de outro
Antônio de Azevedo Castelo Branco Pereira da Silva, tem notável por sua jerarquia, como
por um, naquele tempo, precioso livro acerca da Arte de Guerra.
Dez anos de enamorado, mal sucedido, consumira em Lisboa o bacharel provinciano.
Para fazer-se amar da formosa dama de D. Maria I minguavam-lhe dotes físicos:
Domingos Botelho era extremamente feio. Para se inculcar como partido conveniente a
uma filha segunda, faltavam-lhe bens de fortuna: os haveres dele não excediam a trinta
mil cruzados em propriedades no Douro. Os dotes de espírito não o recomendavam
também: era alcançadíssimo de inteligência, e granjeara entre os seus condiscípulos da
Universidade o epíteto de "brocas", com que ainda hoje os seus descendentes em Vila-
Real são conhecidos. Bem ou mal derivado, o epíteto Brocas vem de broa. Entenderam
os acadêmicos que a rudeza do seu condiscípulo procedia de muito pão de milho que ele
digeria na sua terra.

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